O verdadeiro incêndio
Alguém dirá que o Brasil tem problemas mais sérios e urgentes do que a preservação de sua memória, mas está fora de dúvida que não teríamos tais problemas se a nossa História não fosse colocada no lugar ignominioso em que está

Não bastasse assistirmos parte da memória, da cultura e da pesquisa no País ser incinerada ontem na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, tivemos que ouvir do reitor da UFRJ, instituição responsável pelo Museu Nacional, uma das declarações públicas mais lastimáveis dos últimos tempos: “Faltou uma logística e uma capacidade de infraestrutura do Corpo de Bombeiros que desse conta de um acontecimento devastador como foi esse incêndio”.
Agora esperamos assistir o Ministério Público, em nome da sociedade brasileira, cobrar explicações sobre a logística e a infraestrutura que deveriam evitar tal incêndio. E é claro, as autoridades apurarem as suas causas e as devidas responsabilidades.
Mas enquanto o óbvio não acontece neste Brasil em que tudo é invertível, cabe perguntar o que aconteceu, ou melhor, o que está acontecendo.
Não se espera que reitores sejam especialistas de combate a incêndio e que bombeiros operem milagres em catástrofes consumadas. Mas entre uns e outros, o senso comum mostra que a causa primária desse desastre não é recente e tampouco está na falta de dinheiro para conservar tão importante patrimônio.
Não faltam no Brasil meios para a obtenção de recursos para a área cultural, à vista das generosas subvenções concedidas a promoções artísticas de propósitos questionáveis, particularmente se comparadas à relevância do que se perdeu ontem. O que falta então?
Comecemos a responder por nós, individualmente.
Quem recentemente foi a um museu, a uma exposição ou a um evento cívico que ensinasse ou comemorasse a História do Brasil? Se não foi, verifique na Internet se há alguma coisa do gênero disponível.
Quem já se dispôs a averiguar o conteúdo de História do Brasil que está sendo ensinado aos nossos filhos e netos nas escolas, públicas e particulares? Se não tiver tempo, pergunte a qualquer criança de oito anos quem descobriu o Brasil.
Quem leu um livro lançado nos últimos anos que não trate a História do Brasil como uma miríade de perversões, injustiças, desigualdades, covardias e explorações? Se não leu, passeie pelas prateleiras de uma grande livraria. Não vai encontrar nada.
Passemos ao Estado.
Há no Brasil leis, normas, caminhos e maneiras de se angariar fundos para a conservação e valorização do patrimônio cultural. O que não há é vontade, ou talvez pior, há vontades perversas cujos fins não se sabem quais.
Não faz muito tempo, uma das maiores prefeituras do País alegava não ter recursos para pagar o livro a ser distribuído aos professores de sua rede escolar que cobria a História da cidade multissecular, mas desembolsou sem pestanejar montante muitas vezes maior para patrocinar a “parada” de um movimento de minorias.
Em 1998, quando o Exército comemorou, praticamente sozinho, os 350 anos da Batalha de Guararapes, a Academia Militar das Agulhas Negras levou todos os seus cadetes do 4º ano, jovens de diversas partes do País, ao Rio de Janeiro para conhecerem o inestimável patrimônio cultural da Nação reunido nos museus daquela cidade.
Muito se aprendeu naquela visita, também e infelizmente, até onde chega o fanatismo que exibia no Museu Histórico Nacional, na Praça XV, um “acervo” do MST.
E é uma ilusão pensar em autonomia das universidades públicas. Todo o estamento do ensino superior no Brasil foi dominado pela ideologia, desde os anos 70, como demonstrou o insuspeito Daniel Pécaut em seu livro “Os Intelectuais e a Política no Brasil” (Editora Ática , 1990).
Maior do que a perda que se deu ontem na Quinta da Boa Vista é a que está acontecendo ano após ano no País.
Escolas, museus, arquivos, editoras e centros de pesquisa, apesar de disporem de orçamentos, instalações, funcionários e normas de funcionamento, estão apagando a memória nacional, um processo do qual a desídia que levou ao desastre de ontem foi apenas mais um episódio.
Hoje, a quatro anos da comemoração do bicentenário da Independência, os locais naturais dos festejos estão inviabilizados. Do Museu do Ipiranga, fechado desde 2013, pouco se sabe se as intermináveis reformas estarão concluídas a tempo e o que elas vão apresentar ao público. E do Museu Nacional, onde se concebeu e consumou a Independência, menos ainda agora.
Países mais antigos e desenvolvidos sofreram perdas materiais de patrimônio cultural muito maiores do que nós e as repuseram com o resgate da memória por meio de livros, exposições e reconstruções.
Disso não existe exemplo maior do que é hoje a Catedral de Saint Denis, nas proximidades de Paris, mausoléu de todos os reis franceses devastado pela fúria revolucionária e hoje reconstruída e restaurada em toda sua grandeza para a França.
Isso foi possível por que os franceses e outros povos não perderam sua memória ou souberam resgatá-la.
Alguém dirá que o Brasil tem problemas mais sérios e urgentes do que a preservação de sua memória, mas está fora de dúvida que não teríamos tais problemas se a nossa História não fosse colocada no lugar ignominioso em que está.
Mas todos sentimos, lá no íntimo, de uma maneira ou de outra, de uma forma mais ou menos consciente, que muito maior do que as chamas de ontem é o incêndio que continua a lavrar nos corações e mentes dos brasileiros impedidos de conhecer e amar o Brasil por culpa de uma esquerda elitista e ignorante que insiste em promover uma guerra cultural contra o País.
Esse é o verdadeiro incêndio que tem que ser extinto no rescaldo do que incendiou o Museu Nacional.
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