Como a centenária Castelões ajudou a moldar o mercado de pizzarias no Brasil
Localizada no mesmo imóvel do bairro paulistano do Brás desde 1924, hoje ela é comandada por Fábio Donato, terceira geração à frente do negócio, ostentando a famosa pizza de calabresa artesanal que leva o nome da casa - e uma das 'invenções' do seu avô Vicente copiada até hoje

Sabia que de um time de futebol pode nascer uma pizzaria? E que o hábito paulistano de pedir pizza à noite, na hora do jantar, foi difundido a partir da visão estratégica de um certo empreendedor, que na primeira metade do século 20 vendia fatias quentinhas para os imigrantes italianos nas saídas dos turnos nas fábricas, às seis da tarde e às duas da manhã?
Ou que a pizza de calabresa, hoje um clássico das pizzarias, foi criada pelo mesmo empreendedor para inovar um cardápio mais simplista de redondas (mas não menos delicioso), que levavam queijo, tomate e manjericão? E ainda que um pedreiro, envolvido na obra da pizzaria e do forno a lenha, se tornou seu primeiro pizzaiolo?
Lendas ou não, essas e outras curiosidades dão um molho especial à trajetória da Castelões Cantina e Pizzaria que, assim como o Diário do Comércio, completou 100 anos em 2024. E, mais que atrair celebridades pelos atributos gastronômicos, da apresentadora Hebe Camargo ao tenor italiano Tito Schipa, e automobilistas, jogadores de futebol, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e atualmente até influenciadores de gastronomia, se transformou em um longevo case de negócios.
O mote desde sua criação, que garante o sucesso do empreendimento e faz com que várias pizzarias copiem, façam parcerias ou homenageiem a pioneira pizza de calabresa levemente picante e com toque de erva-doce, é o mesmo.
"Na Itália, não importa onde você esteja nem que horas você chegue, sempre vão te servir o melhor. E é isso que a gente continua fazendo", diz o engenheiro mecânico Fábio Donato, 52, terceira geração à frente do negócio com a companheira Cláudia Pinho, formada em gastronomia e especializada em pizzas e culinária italiana.
Fundada em 1924 por filhos de imigrantes italianos - o oficial de calçados Vicente Donato, avô de Fábio, e o amigo Ettore Siniscalchi, vindo de uma longa linhagem de confeiteiros ("e o único que não gostava de fazer doce", diverte-se) -, a mais antiga pizzaria em atividade no país é considerada uma das primeiras influencers dos hábitos alimentares dos paulistanos desde então. "E talvez seja a mais antiga da América Latina, estamos pesquisando isso", explica o neto do fundador.
Até hoje, funciona no mesmo imóvel da rua Jairo Góis, 126, no popularíssimo bairro do Brás, um dos berços da imigração italiana do início do século passado. A sede informal do time de futebol amador deu origem ao empreendimento.
"Dizem que o time se chamava Castelões pois era o sobrenome da família que fundou a Confeitaria Guarani em 1893 (e depois foi dos Siniscalchi)", conta.
Após as partidas, os dois amigos se juntavam com os colegas de indústrias do entorno, como Moinho Matarazzo, São Paulo Alpargatas, Antártica e outras, para comer "alguma coisa". E que coisas: pão, frios, vinhos, berinjela, frango à passarinho e bisteca alla Fiorentina, entre outras, que aos poucos deram lugar às pizzas de base napolitana (queijo, manjericão e tomate). Depois foram cobertas com aliche e, finalmente calabresa - ideia de Vicente, batizada de... Castelões.
Empreendedor por natureza, percebeu que a comilança daria jogo. Os amigos melhoraram o imóvel e construiram um forno a lenha para "servir muitas pessoas", ajudados por aquele pedreiro - o que gostou tanto da ideia que abandonou o antigo ofício só para fazer pizzas. Da ideia de vender fatias aos operários das fábricas, acondicionadas em latões com carvão para mantê-las quentes, à aquisição da casa ao lado para ampliar o negócio, em 1935, a parceria deslanchou.
Até os anos 1950, quando Ettore viajou para o Rio de Janeiro para assistir a um jogo do Palmeiras, e depois o jogo do Brasil no Maracanã, e decidiu que não voltaria mais, vendendo sua parte para Vicente. Este assumiu integralmente a pizzaria, treinou o filho João para gerenciar os negócios ao seu lado e, anos depois, ensinou todas as suas receitas - culinárias e de gestão - para o neto Fábio.
Estas deram origem à "pizza paulistana" de hoje, com sua massa encorpada, molho de tomates frescos e maduros e coberturas diferenciadas, que se popularizou pelo Brasil por priorizar texturas e sabores.
100% PAULISTANA
Foi a inovação de uma empresa carioca, o Grupo Sérgio, que na década de 1980 ajudou a reforçar o apreço dos paulistanos pelo hábito de comer pizza ao popularizar o conceito de rodízio na Capital paulista.
O modelo é replicado até hoje em qualquer tipo de negócio de alimentação, seja churrasco ou esfihas, temaki e sushi, pastel ou até donuts e açaí.
Na avaliação de especialistas em foodservice, porém, as experimentações de Vicente Donato, aperfeiçoadas pelo filho e o neto para manter a Castelões em evidência ao longo de um século, fizeram com que ela se tornasse uma das responsáveis por transformar São Paulo na "capital nacional da pizza".
Segundo a Associação Pizzarias Unidas do Brasil (Apubra), mais de 63% desses estabelecimentos trabalham com a modalidade de pizza "100% paulistana", como a difundida pela Castelões.
Por isso se diz que ela ajudou a moldar o mercado brasileiro de pizzarias, que continua a atrair os apreciadores da iguaria de origem napolitana com pequenos cuidados, como manter viva a produção artesanal e a memória afetiva da culinária dos antepassados de Fábio, conforme conta.
Tudo isso envolto em uma massa elástica de fermentação prolongada na espessura correta, bordas altas, aeradas e crocantes, cobertura na medida e sabores tradicionais, sem invencionices, nem ingredientes esdrúxulos.

São essas regras que garantem o sabor e a textura da pizza paulistana, explica Fábio: apesar do grande volume de pizzarias populares que produzem versões diferentes, com bordas mais finas do disco ou massa grossa, a paulistana tem essas características. Além de carregar aspectos de crocância como a clássica italiana, ou mais macias, como as napolitanas.
Essa consistência, obtida por um lento processo de maturação em fermentação, a partir do alcance da temperatura ideal para assar, é que permite a formação de bolhas na borda da pizza, trazendo leveza e maciez ao degustar, afirma.
"A democratização do tipo de pizza está ligada aos hábitos de consumo dos clientes. Por isso é que hoje caminhamos para uma pizza contemporânea, que prima pela leveza, digestibilidade e novas combinações de ingredientes e sabores."
Fábio lembra que o "modelo" paulistano segue como o mais conhecido - apesar de existirem outros estilos de pizza, como a clássica italiana ou a "verdadeira pizza napolitana", que segue regras internacionais da Associazione Verace Pizza Napoletana (AVPN) e utiliza produtos de Especialidade Tradicional Garantida (STG, na sigla em italiano). Ou a pizza romana, de formato retangular.
E assim, também é o mais lembrado nos pedidos de fins de semana. “A Castelões segue o legado de perpetuar este formato de pizza ao longo dos anos, sempre priorizando a qualidade e o sabor colocado na mesa”, destaca.
FIEL ÀS ORIGENS, MAS DE OLHO NO FUTURO
Fazendo jus à origem futebolística da Castelões com a máxima "time que está ganhando não se mexe", há décadas que a pizzaria, hoje com obras internas de melhoria, ainda atrai clientes anônimos e famosos ostentando a mesma decoração que remete ao ambiente divertido e meio confuso das antigas cantinas italianas.
Toalhas xadrezes nas mesas, garrafas de vinho penduradas em batentes de porta, alternadas com as calabresas produzidas na casa postas para secar e azulejos da época da fundação dão o clima de cantina. Assim como os sacos de farinha importada, utensílios domésticos antigos como balanças, e latas de azeite com ar vintage (porém originais). E muitas, muitas fotos de visitantes, amigos e famosos.
Uma equipe para lá de enxuta, mas competente, todos com no mínimo 20 anos de casa, segundo o dono, dá conta de organizar o serviço, preparar e servir, em média, 1,5 mil pizzas por mês. Todas a um custo médio de R$ 120, com sabores clássicos como muçarela, napolitana, portuguesa, quatro queijos e a Castelões. E tudo sob a supervisão de Fábio, que trabalha lá desde os 15, quando ajudava o avô, que comandou a pizzaria até 1987, quando faleceu. E depois o pai, João.
Após o falecimento deste, em 2014, Fábio assumiu de vez os negócios e, nos primeiros anos, tocou a pizzaria só com ajuda dos funcionários. Nos últimos cinco, conta com a valiosa parceria de Cláudia que, com sua expertise gastronômica e formação pelo Senac, é responsável pela cozinha e o preparo das coberturas.
Além de gerenciar os negócios e participar como jurado de concursos de pizza (inclusive na Itália), aconselhar ou trocar experiências com outros empreendedores - caso da Companhia Tradicional do Comércio, dona da marca de pizzarias Bráz, da Lanchonete da Cidade e Bar Pirajá, com quem já fez collabs -, e ter sido até presidente de um sindicato do ramo, Fábio é uma espécie de figurinha carimbada no mercado, sempre dando consultoria por sua experiência no segmento.
Mesmo envolvido com a cultura italiana, viajando ou pesquisando histórias e tudo o que for vinculado às tradições culinárias e culturais do país, o neto de Vicente é o responsável pelas massas e assume os fornos em dias mais movimentados.
E, conforme aprendeu com o avô, continua a exigir a qualidade dos ingredientes, além de reforçar sua quase obsessão em sempre alcançar o preparo perfeito das massas que, segundo ele, melhoraram ainda mais. Em setembro de 2023, após quase 15 anos de buscas, conseguiu importar o que considera "a melhor máquina da Itália para bater massa de pizza."
Para um futuro próximo, o plano da Fábio e Cláudia é fazer um retrofit no imóvel para "levar o cliente aos primeiros anos da Castelões". A ideia também é decorar a pizzaria com outros itens que remetem à fundação, como geladeiras de madeira.
Mas a meta principal ainda é entregar a melhor pizza, sempre com ingredientes selecionados e bem temperada, afirma ele, que diz se manter sempre aberto às novidades "desde que não se perca o padrão de qualidade."
Outro plano para um futuro próximo, segundo Fábio, é abrir uma sorveteria pois, em sua avaliação, todos os sorvetes que experimenta são iguais porque têm a mesma base. "Fala-se muito em sabor, mas tudo é bem parecido", reclama.
Ele continua: pedir um sorvete de pistache ou de abóbora com coco dá no mesmo, pois não se sente que são destes sabores. "Antes, não se conseguia fazer um sorvete à base de água, mas com as máquinas de hoje dá para fazer um tão cremoso e saboroso quanto um com base de leite. Ou um com limão de verdade sem ficar amargo, um crocante com base de baunilha... Por isso quero fazer do meu jeito: aí vai dar certo", finaliza o sincerão Fábio, do alto de sua experiência à frente do estabelecimento centenário criado por seu avô.
FOTOS: Mauro Holanda