"País vive uma luta de classes", afirma Delfim Neto
Em entrevista ao Diário do Comércio, o economista diz que o topo da pirâmide salarial dos servidores públicos é sustentado pelos trabalhadores. É esse o conflito que agrava o desequilíbrio fiscal e pode virar o país de cabeça para baixo

Aos 89 anos, Antônio Delfim Netto, decano dos economistas brasileiros, demonstra uma vivacidade de adolescente.
Ele diz acreditar que os interesses corporativos dos servidores públicos que recebem grandes salários instituíram uma “luta de classes”, pois eles não querem deixar de ser sustentados pela massa de trabalhadores.
A seu ver, a questão fiscal não está sendo resolvida, e há chances de o novo Congresso, a ser eleito em 2018, refletir a superação de um “incesto” que ameaçou a democracia, ao colocar deputados e senadores sob a dependência de seus financiadores de campanha.
Na sucessão presidencial, ele acredita que, se for para derrotar Lula – de quem é amigo -, que isso seja feito pelas urnas, e não por inviabilidade judicial. Caso contrário, o dirigente petista exercerá seus dotes de destruição como oposição a um governo liberal.
A seguir, a íntegra da entrevista no texto e os melhores trechos em vídeo:
Se o sr. fosse lojista, estaria cauteloso ou otimista?
Cautelosamente otimista. Há sinais de uma pequena recuperação, que espero que vá se confirmar com a permanência do Temer até 2018, se o governo continuar no caminho em que se encontra. A situação fiscal é muito grave, e o Brasil não entendeu ainda essa gravidade.
Nós tínhamos um superávit primário de 2,1% ou 2,2% do PIB, em média, até 2011 ou 2012. Hoje estamos com déficit primário de 2,5% do PIB. Um rombo de 4,5%.
Isso está fazendo explodir a dívida, o que vai na direção contrária da política monetária, que tenta baixar a taxa de juros. Se não consolidarmos a ideia de que o sistema vai caminhar para o equilíbrio, o sistema vai dar um choque.
Mas o recado do governo já está indo no sentido inverso, com os R$ 4,1 bilhões gastos com os deputados, para que o presidente mantivesse seu mandato.
O empenho é o de menos. O trágico foi ter aceito o aumento do funcionalismo, dizendo que já havia sido prometido pela Dilma.
O empenho já estava no orçamento. Foi distribuído para os inimigos e para os amigos. O grave foi não ter enfrentado o maior problema do Brasil.
Qual seria ele?
O Brasil vive uma luta de classes, entre o alto escalão do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, e o trabalhador que sustenta toda essa gente. O estamento público não cabe no PIB.
Alguns dizem que vão aumentar o imposto, porque não tem onde cortar. Mas como? No mundo inteiro, quando o Estado não cabe no PIB, corta-se no Estado.
Não há uma convicção de verdade para fazer o que precisa ser feito. Tem que enfrentar esse problema.
O sr. se refere à Previdência?
É uma questão crítica que precisa ser enfrentada. Se não sair, esse negócio vai virar de perna para o ar. O desequilíbrio fiscal vai continuar.
Daqui a pouco as pessoas vão entender que tem um pouco de mentira na ideia de que estamos caminhando para o equilíbrio fiscal. Esse processo vai hoje na direção contrária da política monetária.
A oposição tem hoje na Câmara no máximo 140 deputados. Temer pode ser derrotado, mas por seus aliados.
Ninguém tem condições de dizer se ele vai conseguir. Eu acredito que teremos alguma coisa. Não será aquela reforma sonhada. Acho que pode sair a idade mínima e uma regra de passagem razoável.
Com a vitória na Câmara, Temer será perdoado?
Ele não será perdoado. O que se fez foi sobrestar o processo. Ele vai para a Justiça de primeira instância em 1º de janeiro de 2019 e vai responder na Justiça comum.
O único que saiu isento de tudo isso foi o “cappo de tutti cappi” (Joesley Batista), que foi o delator. Esse sim, foi inocentado.
Essa inocência será aceita pacificamente pela opinião pública?
Não tem explicação plausível para esse negócio. O crime é bem maior que está suposto. O que é que calibra uma sociedade? É a paridade de poder entre o capital e o trabalho.
O que é que dá essa paridade? Os trabalhadores fizeram sindicatos, depois partidos políticos, de tal forma que o sufrágio universal é o produto disso.
Dá para cada trabalhador um voto. Sabemos que, no mercado, para o empresário, cada real é um voto. Para superar essa disparidade, é preciso a independência do Legislativo, que é fundamental para o equilíbrio da democracia.
Mas a Lava Jato provou que essa independência não existe, e que os parlamentares dependem do poder econômico.
A Lava Jato provou que há um incesto nos últimos anos, entre o Estado e o setor privado, e que isso destruiu a democracia.
O Congresso é o produto de uma corrupção de financiamento. Quem manda no Congresso não é o eleitor. Quem manda é o financiador. Isto é a morte da democracia.
Ele (Joesley) foi um dos principais autores desse assassinato.
O sr. acredita que esse diagnóstico se refletirá no comportamento do eleitor em 2018, ao substituir todos os deputados e dois terços dos senadores?
Eu não tenho a menor dúvida. Não sei ao certo como isso vai acontecer. Mas sei que os efeitos disso serão devastadores. Creio que haverá uma mudança importante.
Será que tudo isso não estaria abastecendo a candidatura presidencial do Lula?
Eu gosto do Lula. Ele é um bom administrador. Ele é um diamante bruto. Eu sempre brinquei com ele: “Se você fosse para a USP, você conheceria um tal de Aristóteles e nunca mais seria o mesmo.”
O Lula fez um bom governo. Foi ajudado pela sorte. Soube melhorar as relações de troca. Soube aplicar o presente que o Brasil ganhou (China), distribuindo renda.
Até a Dilma, no primeiro ano de mandato, fez um bom governo. A Dilma se perdeu de 2012 em diante. Quando começou uma política voluntarista, confusa. E que terminou, depois, nesse processo eleitoral desastroso.
Mas o Lula ganha?
Tudo vai depender dos processos (judiciais) em andamento. Mas na minha opinião o Lula, se for o caso, deve ser impedido nas urnas. Vai ser ruim se ele for impedido pelo Judiciário.
O Brasil está rachado ao meio. Para vencer o Lula, é preciso vencê-lo no voto. E constituir uma sociedade diferente.
Minha impressão é que, se o Lula for impedido, o próximo governo vai ter muita dificuldade de administrar. Ele pode ser impedido como presidente.
Mas não em tentar construir uma maioria ou uma minoria agressiva no Congresso. E ele sabe destruir com muito mais eficiência que construir. Esse negócio é um pouco mais sério do que as pessoas estão pensando.
O sr. se refere ao barulho que será feito pelas esquerdas?
O núcleo que se diz de esquerda no Congresso é em verdade o que há de mais reacionário. Essa semana foi didática.
Aprendemos muita coisa. Ruim e boa. A gente vê que tem alguma coisa se mexendo, nos velhos políticos que não participaram do incesto entre Estado e a corrupção.
Há uma ameaça de reagrupamento, e está para nascer alguma coisa que vai se opor a isso. E a partir daí, é o problema da disputa para ver quem ganha.
Como isso se daria?
Será em torno de partidos, e de lideranças que não faltam. Talentos existem. Eu acho que o comportamento do presidente da Câmara (Rodrigo Maia) foi exemplar.
Mostrou caráter e capacidade decisória. O Brasil tem uma porção de gente muito competente. E gente que admite o contraditório. Não se pode administrar o Brasil dando ordens.
Nos Democratas, o sr. então está apostando suas fichas no Rodrigo Maia, e não no Ronaldo Caiado?
Não estou apostando fichas. O Ronaldo é outro candidato possível. E tem muitos outros candidatos possíveis. Mas se isso que eu estou imaginando acontecer, se houver um reagrupamento no Congresso, de velhos políticos que não foram corrompidos pelo incesto, disso tudo pode sair gente de boa qualidade para disputar a eleição. Se vai ganhar, é outra coisa.
O senhor está entre os que temem a candidatura do deputado Jair Bolsonaro?
Acho muito pouco provável que se tenha uma solução de radicalismo, seja da esquerda, seja da direita. O Brasil não vai se meter numa aventura.
Basta olhar para a Venezuela de hoje para ver como isso termina. E nós mesmos temos uma experiência de 21 anos (regime militar).
Não existe nenhuma oura forma de organizar a sociedade, com liberdade e igualdade de oportunidades, a não ser o sistema democrático, que admite o mercado.
O sr. é habitualmente crítico ao PSDB. Pode sair dele essa solução?
Os tucanos têm o bico muito grande, a asa muito curta, comem os próprios ovos, têm um intestino longo. E cada vez que pousam fazem uma sujeira danada.
É uma crítica em que cabe o João Doria?
Sobre ele, eu acho o seguinte: ele está se colocando, é trabalhador, tem um domínio da mídia muito interessante. Mas não há ninguém de fora dessa disputa. Creio que o que vai decidir a eleição será a mídia eletrônica.
O próprio Doria foi eleito da sexta para o sábado (a votação foi no domingo), quando as pessoas se comunicavam por e-mail e se diziam que era possível liquidar o Haddad já no primeiro turno.
Ele ganhou 4 a 5 milhões de votos no final. Um acidente, que mostrou o estado de espírito da sociedade. Essa sociedade não tem hoje ninguém que a organize. Ela tem movimentos que se comunicam instantaneamente.
Os movimentos que vão de um lado para o outro com muita velocidade.
O sr. não está sendo excessivamente otimista, ao acreditar que no final do túnel haverá apenas o bem e não o mal?
Eu estou com 90 anos, e posso me dar ao luxo de ser otimista. Espero ver o Brasil voltar a um certo crescimento.
Podemos chegar a isso sem uma reforma política?
Um mínimo de reforma política precisa ter. Tem que fazer uma regra de barreira e acabar com as coligações nas proporcionais.
O financiamento privado não é um mal em si. Ele precisa ser controlado. Eu preciso doar par um só partido. Se doar para todos, eu tenho outras intenções.
VÍDEO: William Chaussê