Quem tem culpa pela destruição do Museu Nacional?
Incêndio se seguiu aos cortes de verbas do governo federal desde 2014 (governo Dilma) e provável irresponsabilidade orçamentária da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Com a cultura brasileira enlutada pela destruição de praticamente todo o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, a pergunta pertinente é apenas uma: quem são os culpados?
A resposta fornecida pelo prefeito carioca, Marcelo Crivella, de que foi "uma fatalidade", tem pouco interesse pela inexistência de qualquer inteligência.
O incêndio, que começou às 19h30 de domingo (2/9) e que demorou seis horas para ser controlado, atingiu em cheio uma instituição que desde 2014 (governo Dilma) não recebia os R$ 520 mil para a manutenção do edifício, cuja primeira ala foi inaugurada por d. João 6o. em 1818, e que serviu de residência oficial de d.Pedro 2º (1825-1891).
Essa verba é tão ridiculamente pequena que poderia ser coberta com o auxílio moradia mensal de 115 juízes de direito. Ou equivale ao salário mensal de apenas 16 deputados federais.
Se a dotação foi desprezada, o que está em jogo é o caráter secundário que a memória e a cultura passaram a ter dentro do Estado brasileiro.
UMA FORMA ENCICLOPÉDICA DE MUSEU
As 20 milhões de peças que constituiam o acervo do museu, na Quinta da Boa Vista, Zona Norte do Rio, faziam parte de uma ideia de museografia que triunfou na Europa no início do século 19.
A exemplo do British Museum, em Londres, ou do Ermitage, em São Petesburgo, o Museu Nacional pretendia ser uma síntese de tudo aquilo que a civilização humana havia reunido em sua evolução cultural.
Não eram apenas pinturas, afrescos ou esculturas. Nem tampouco apenas tapeçarias ou mobiliário típico dos diversos momentos da história doméstica das elites no Brasil. A ideia era reunir, num só local, tudo o que tivesse uma significação importante para o homem.
D. Pedro era casado com a princesa austríaca Teresa Cristina. Ao viajar ao Brasil para se tornar imperatriz, ela recebeu de seu pai, imperador austro-húngaro, uma coleção de peças que foram imediatamente incorporadas à coleção da Quinta da Boa Vista.
É por isso, por exemplo, que o local abrigava múmias egípcias e um afresco que arqueólogos recuperaram das cinzas de Pompeia, cidade italiana submersa pelo Vesúvio no início da era cristã.
A riqueza das coleções também refletia a curiosidade de d.Pedro 2º em campos como a pré-história e a botânica. Uma de suas poucas viagens ao exterior -naquela época o imperador viajava com o seu próprio dinheiro, e não com verbas do governo - o levou ao Egito e ao Oriente Médio. Tudo o que d.Pedro conseguiu comprar em antiquários foi imediatamente incorporado ao acervo do museu.
Uma das poucas peças que o fogo não destruiu foi o meteorito de Bendegó, nome de uma localidade da Bahia em que ele caiu em 1784.
Pelas regras do federalismo do Segundo Reinado, o meteorito pertencia à província baiana. Mas o imperador a requesitou, gerando uma das mais curiosas e bem-humoradas crônicas de Machado de Assis.
Foram igualmente salvas as peças da coleção de invertebrados, que estavam numa construção anexa. Mas se desconhece o paradeiro de Luzia, a humanoide mais antiga (12 mil anos) a ser descoberta em território braisileiro. Não se sabe tampouco se o fogo destruiu os ossos de um dinossauro que viveu no país ou outros tesouros do departamento de paleontologia.
GOVERNO E UNIVERSIDADE
Outra questão que precisa ser respondida é o papel da Universidade Federal do Rio de Janeiro, à qual o Museu Nacional estava ligado.
As universidades têm por lei autonomia na gestão de seus orçamentos -foi uma das poucas conquistas que elas tiveram durante o regime militar, para impedir que o poder central, por meio da alocação de verbas, direcionasse o ensino e a pesquisa.
O acervo da Quinta da Boa Vista era material de pesquisa de cientistas vinculados à UFRJ, antiga Universidade do Brasil.
No entanto, uma das críticas que hoje se faz é que a autonomia universitária gerou feudos, em que os interesses corporativos dos professores e pesquisadores prevalecem, no momento da divisão do orçamento, sobre a preservação do patrimônio que a universidade tem sob a sua guarda.
É um assunto obviamente tabu, sobretudo em razão da predominância do Partido dos Trabalhadores nas reitorias e sindicatos docentes. No caso específico da UFRJ, no entanto, a reitoria era toda ela controlada pelo Psol.
É curioso, por exemplo, que professores tenham se apressado, já na noite de domingo, a criticar Michel Temer e os "golpistas", quando os hidrantes estavam a ponto de secar desde governos anteriores.
Em São Paulo, o Museu do Ipiranga, ligado ao organograma da USP, está fechado porque a universidade não tem meios para sua manutenção. Na Quinta da Boa Vista, 10 das 30 salas de exposições também estavam fechadas ao público.
No domingo, enquanto o museu queimava com suas labaredas dantescas, o Ministério da Cultura anunciou que em junho último assinara com o BNDES um convênio para que R$ 20 milhões fossem destinados à conservação do Museu Nacional, que naquele mês compleatava 200 anos.
Pois não deu tempo para que o dinheiro chegasse e evitasse a tragédia, pela qual todo brasileiro minimamente consciente de sua história cultural deveria, hoje, estar aos prantos.
FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil