Entenda por que a China está mudando a cara do varejo mundial
O país é um verdadeiro laboratório com 1,4 bilhão de pessoas testando novas tecnologias a todo momento, sem medo das consequências e empolgadas com o que o futuro pode trazer, afirma o ex-embaixador Marcos Caramuru

A China se torna cada vez mais relevante para o entendimento das tendências do comércio. Termômetro da economia global, a influência do gigante asiático se dá não somente pelos produtos que fabrica e distribui pelos continentes, mas também pela maneira como inova no campo das experiências de consumo.
Mas, como a China ganhou tanta importância no comércio mundial? Marcos Caramuru, conselheiro internacional do Cebri e ex-embaixador do Brasil na China, que viveu 12 anos naquele país, tem um palpite.
Sua explicação começa pelo Plano Padrão 2035 da China, também conhecido como "China Standards 2035", que ele define como uma iniciativa abrangente para moldar o futuro da tecnologia e da economia chinesa. O foco é posicionar o país como líder na definição de padrões globais em áreas como inteligência artificial, 5G e outras tecnologias emergentes.
Para os próximos dez anos, a meta é que os serviços digitalmente comercializáveis superem 50% do comércio total de serviços da China. Nessa esteira, o país também pretende estabelecer um sistema de governança digital seguro e eficiente para elevar o nível de abertura institucional e fortalecer sua competitividade no mercado global. Tudo isso, segundo Caramuru, molda a atuação do país diante do resto do mundo.
Ele cita também que a predisposição de uma população de 1,4 bilhão de pessoas em experimentar novas tecnologias gera um ambiente propício para o avanço, funcionando como um laboratório de testes para inovação. E isso, diz, gerou um acúmulo de dados extraordinário, que são elementos centrais de todo planejamento e base da IA e de tudo o que se pode projetar para o futuro. Essa série de experimentações, afirma Caramuru, passou a ser um vetor para a experiência de outros países.
Ainda falando sobre a cultura chinesa, ele cita uma sociedade muito focada no futuro, com um senso coletivo de otimismo por ter na inovação uma visão de mundo inspiradora. "Me lembro de perguntar a quem morava lá: o que você acha melhor, o passado ou o futuro? Nunca me responderam o passado. Todos tinham a certeza de que o futuro seria melhor e me diziam 'vivo melhor que meus pais e meus filhos viverão melhor do que eu'. Essa é a sequência do pensamento chinês", disse Caramuru durante o Enasuper, evento organizado pela Abrasce, associação que representa os shoppings.
Experiências geram experiências
Caramuru recorda que, quando o e-commerce apareceu na China, os shopping centers entenderam que precisavam passar da função de ser apenas um local de venda para um ponto de experiência - e conta que daí começaram a aparecer shoppings focados em arte, em oficinas, espaços mais sociais e de alta tecnologia. Hoje, diz, esses empreendimentos trazem um novo conceito chamado de CuRetail, que mistura as palavras curadoria e varejo.
Segundo Caramuru, o movimento tende a se tornar a nova aspiração dos estabelecimentos, transformando a curadoria em uma nova força do varejo ao criar um ambiente de compras emocional com narrativas para as novas comunidades de consumidores. Nas palavras do especialista, a inspiração é criar instalações mais interessantes, com decoração mais intimista e interativa, menos mármores, com painéis que podem ser movimentados para novos cenários, ambientes que permitam mais possibilidades e, assim, a própria construção ganha um ar mais envolvente.
Caramuru diz que hoje a China é líder em IA, com 4,3 mil empresas nessa área no país, avaliadas em U$ 70 bilhões, concentrando 61% das patentes globais relacionadas a essa tecnologia. Ele destaca também que a China é líder na fabricação de robôs, sendo que 52% dos robôs industriais do mundo estão no país. Os chineses instalaram 276 mil robôs em 2023 e seguem uma política muito ativa para essa incorporação.
O ano de 2025, segundo Caramuru, está sendo o primeiro de produção em massa de robôs humanóides e a ideia é passar a comercializar 6G em 2030, com a velocidade de transmissão 50 vezes maior que o 5G.
"Eles não têm medo do caos, é impossível alcançá-los. Embora os EUA estejam mais próximos daquilo que a China faz, vai ser cada vez mais difícil concorrer e absorver o que a China vem desenvolvendo. O consumidor chinês tem uma ansiedade sobre o futuro que ninguém mais tem. No Brasil, não temos essa visão, somos acomodados com o presente", disse.
O exemplo da Alibaba
Luiza Jacobsen, gerente sênior de relações governamentais do Grupo Alibaba, lembra que a empresa foi criada em 1999, por Jack Ma, com o intuito de apoiar e agilizar as entregas de pequenas e médias empresas chinesas na internet. Quase 15 anos depois, o negócio já vivia o status de grupo e ingressou na Bolsa de Nova York batendo recordes, com o “maior IPO do mundo”, e não parou de se reinventar, diversificando seus ramos de atuação.
Considerada uma das maiores empresas de comércio eletrônico e tecnologia do mundo, com 1,4 bilhão de consumidores ativos, Luiza conta que o Alibaba alcançou primeiro a Ásia e depois o mundo. E conseguiu crescer de forma estruturada, diversificando o produto e o ramo, passando a atender o mercado B2C. Ou seja, falando diretamente com o cliente final e entrando também em tecnologia, logística e entretenimento.
Desde o início, o negócio teve uma concorrência com o eBay, mas um trunfo do Alibaba era todo o conhecimento do mercado e do consumidor. Na época, em meados de 2004, a maioria dos chineses ainda não tinha cartão de crédito e dessa dificuldade surgiu a ideia de criar o Alipay, um sistema de pagamento que fez toda a diferença e levou a empresa a começar seu crescimento de forma acelerada.
Hoje, o Alibaba está dividido em seis unidades de negócio: Cloud Intelligence, de serviços de inteligência artificial em nuvem para empresas e governos, como a Alibaba Cloud e DingTalk; Taobao Tmall Commerce Group, com serviços de comércio eletrônico para varejistas e consumidores; Local Services, uma plataforma de navegação Amap, serviço de entrega Ele.me e outros negócios de serviços locais; Cainiao Smart Logistics, soluções logísticas inteligentes para empresas de comércio eletrônico; Global Digital Commerce, de serviços de comércio eletrônico para clientes globais, como o AliExpress; e Digital Media and Entertainment Group, de conteúdo e serviços de entretenimento digital, como a Alibaba Pictures e Alibaba Music.
Vendendo para mais de 240 países, a executiva destaca que o mercado de vendas com transmissão ao vivo foi iniciado pelo Alibaba e há quase cinco anos os fornecedores faturam bilhões de yuans em vendas por meio da plataforma de transmissão Taobao Live. Segundo Luiza, no último ano, plataformas próprias e o TikTok foram palco de competições de influenciadores e empresários chineses, mostrando e vendendo itens em menos de dez segundos.
Os produtos vão de roupas a calçados, secadores de cabelo e até itens de beleza. Em entrevistas na imprensa chinesa, Xiang Xiang, uma das vendedoras que viralizou, disse ter arrecadado 75 milhões de yuans (cerca de R$ 51,6 milhões) em uma série de lives durante um feriado chinês. Ela segura a mercadoria por alguns segundos, diz apenas o preço e passa para o próximo.
"Eles inventam de tudo o tempo todo. A China já não é mais o futuro, e sim o presente. E sabe fazer o híbrido como ninguém. Por lá, a tomada de decisão é muito rápida e há muito incentivo fiscal para fortalecer o varejo físico", disse.
IMAGEM: Câmara de Comércio Brasil-China/divulgação