Como se chega lá
Se não formos capazes de tirar lições do grande estudo de caso histórico que é a Segunda Guerra, permaneceremos fora do mundo que sabe muito bem o que ela foi. E como se chegou a ela

Perplexos com a falta de rumos do País, os brasileiros não têm tempo e paciência para se dar conta de que nesta quarta-feira, 8 de maio, comemorou-se o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
Mas é bom que encontrem. Se não formos capazes de tirar lições do grande estudo de caso histórico que é a Segunda Guerra, permaneceremos fora do mundo que sabe muito bem o que ela foi. E como se chegou a ela.
Aliás, esse é o grande serviço que a causadora do conflito, a Alemanha, presta à humanidade, não se deixando esquecer do mal que fez a si mesma e ao mundo. Enquanto os alemães fizerem isso, podemos dizer que estamos mais seguros. Mas não apenas eles. Nós também devemos fazê-lo, habitantes desse tempo construído sobre os escombros da maior guerra da História.
A primeira condição para entendermos como a Alemanha desencadeou guerras mundiais em 1914 e 1939, assunto já abordado aqui por ocasião do centenário do armistício, é termos em muito boa conta o poder das ideias numa sociedade em crise.
Depois da derrota em 1918, devido ao desmoronamento do front interno causado pelo levante comunista de marinheiros em Kiel, instalou-se um regime politicamente débil, a República de Weimar (1919-1933), enquanto pipocavam insurreições de toda natureza, indo do golpe liderado pelo capitão Kapp à república bolchevista da Saxônia.
Em meio à crise econômica marcada por uma das maiores hiperinflações da História, a Alemanha mergulhou durante a década de vinte em um período de grande instabilidade política, no qual se destacou a tentativa de golpe de Hitler, em Munique (1923) que o catapultou à fama.
E para anuviar o panorama social já complicado, a crise mundial de 1929 se encarregou de liquidar a estabilidade econômica alcançada em meados da década.
Assim, no início dos anos 30, era fácil para os alemães, assustados com a desordem, desesperançados de um futuro melhor e irritados com seus políticos, debitarem todo mal que lhes afligia à República de Weimar, na verdade, desde o seu início, uma república sem republicanos.
Sobre o clima da Alemanha nesse período, Karl Jaspers, o filósofo e psicólogo da complementaridade entre as pesquisas filosófica e científica, escreveu a obra luminar sobre o que se passava em seu país “A Situação intelectual deste tempo” (1931), alertando sobre os riscos do mergulho na irracionalidade e no niilismo.
Mas a essa altura, como apontou Lionel Richard (A República de Weimar, Companhia das Letras, 1988), “a ofensiva dos ideólogos nazistas” já tinha impulso muito maior.
Desde 1929, a Liga para a Defesa da Cultura Alemã, fundada por Alfred Rosenberg, ataca o “bolchevismo cultural: isto é absolutamente todas as obras e os autores que não cantam o sangue e solo alemães”.
No mesmo ano que Jaspers publicava sua obra premonitória, o “pseudofilósofo” Rosenberg lançou o livro “O mito do século XX” (1931), “uma cômica mistura de suas confusas ideias... impingidas como fruto daquilo que passava por erudição nos círculos nazistas” (Ascensão e Queda do Terceiro Reich, William Shirer, 1964).

Quando, em 30 de janeiro de 1933, Hitler se tornou Chanceler (na Alemanha equivalente a Primeiro-Ministro) ele já dispunha de uma base ideológica consolidada com alguma penetração na sociedade alemã.
Daí por diante, movendo-se com impressionante oportunismo e implacável determinação, o Cabo Adolfo foi cooptando, descartando, ultrapassando, desmoralizando, intimidando, comprando, enganando, calando e matando quem quer que se colocasse no seu caminho, até antigos e fieis aliados.
Apenas quatro dias depois (2 de fevereiro) de ter assumido o cargo de Chanceler, Hitler fez um discurso de duas horas para generais e almirantes garantindo-lhes os meios para o ressurgimento militar do país.
Em mais alguns dias, a 27 de fevereiro, um misterioso incêndio atingiria a sede do Reichstag, o parlamento alemão, servindo o episódio como pretexto para as medidas de exceção do Decreto de Proteção do Povo e do Estado.
No dia 21 de março, na cerimônia de abertura do parlamento orquestrada pelo seu ministro da propaganda Goebbels na Igreja da Guarnição de Potsdam, o que se viu foi um Hitler submisso e respeitoso, cumprimentando o presidente da República, o venerado Marechal Hindenburg.
O golpe final no que ainda restava de democracia na Alemanha veio logo em seguida, a 23, quando à custa de muita intimidação e truculência, o parlamento dominado pelos nazistas aprovou, por 441 votos a favor e 84 contra, a Lei para Eliminação do Perigo contra o Povo e o Estado.
Em 14 de outubro, concluindo o ano da revolução nacional-socialista, Hitler retirou a Alemanha da Liga das Nações, a ONU da época; dissolveu de vez o parlamento; colocou exército e marinha em alerta face a possíveis retaliações dos aliados; e convocou um plebiscito, no qual obteve a aprovação, por mais de 90% dos alemães, às suas medidas.

No ano seguinte, 1934, Hitler consolidou seu poder.
Concluiu o infame pacto com os chefes militares pelo qual, depois da morte do Marechal Hindenburg o cargo de presidente seria extinto, driblando assim os monarquistas que confiavam na restauração do seu regime após a morte do velho herói leal ao Kaiser.
E explorando a insatisfação da população e das forças armadas com os arruaceiros das tropas de assalto S.A., desfechou a 30 de junho o golpe de força bruta que passou à História como a Noite das Facas Longas, durante o qual massacrou generais e membros do partido, prendendo e neutralizando ainda seu Vice-Chanceler e outros políticos. Sem enxergar o significado do ocorrido, militares e juristas apoiaram o golpe e a sociedade se calou.
Quando Hindenburg morreu em 2 de agosto, os cargos de Chanceler e Presidente foram unidos na figura do Führer, a quem, a partir de então os oficiais das forças armadas foram obrigados a prestar juramento de fidelidade pessoal.
Foi assim, pela trajetória do homem cercado por uma aura mítica de infalibilidade, que a Alemanha chegou lá: ao poder total que levou à sua perdição.
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*21 de março de 1933: Hitler cumprimenta o presidente Marechal Hindenburg, herói militar da 1a Guerra Mundial, na missa da Igreja da Guarnição de Potsdam, evento de propaganda cuidadosamente montado por Goebbels para marcar a abertura do parlamento alemão depois do incêndio de sua sede em 27 de fevereiro
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