Anistia, dosimetria e Justiça
"Acredito que o acordão continuará a se basear na narrativa do 'golpe', pelo menos na parte que efetivamente interessa a seus autores, que é, desde o começo, eliminar Bolsonaro da política"

Anistia é uma prerrogativa do Congresso, assegurada pela Constituição, e que já foi utilizada inúmeras vezes no Brasil, inclusive beneficiando políticos ainda em atividades graças ao perdão.
O grande desafio para o Brasil fazer um “Projeto de Nação”, que envolva toda a sociedade e recomponha o tecido social, acabando com a polarização existente, somente será viável se o Supremo encerrar sua intervenção. A anistia oferece essa oportunidade, sem que haja vencedores ou vencidos.
Escrevi há algum tempo, antes do último julgamento, que não me parecia que os condenados do 8 de janeiro necessitassem de anistia, mas sim de Justiça. Considerava, contudo, que a anistia serviria para aliviar os sofrimentos das centenas de prisioneiros e passaria um pano na atuação do STF.
Assiste-se agora à grande pressão de parte expressiva da sociedade para uma ação do Congresso em favor da anistia. Infelizmente, o que se constata é que a Câmara dos Deputados, por uma manobra de seu presidente, típica de seus melhores momentos, fingindo acatar a anistia, a esvaziou e a transformou em um “acordão” ainda não bem definido, mas que consegue o objetivo de neutralizar a anistia.
Ao propor a “dosimetria” das penas, o relator devolve ao Judiciário o controle, pois é competência exclusiva dos juízes essa ação.
A dosimetria da pena é o processo de determinar a pena apropriada para uma infração penal cometida. Isso inclui considerar as circunstâncias do crime, as características do réu e outros fatores relevantes. O objetivo da dosimetria da pena é garantir que a pena seja proporcional ao crime cometido e que aja como uma forma eficaz de prevenir futuros crimes. A aplicação da pena privativa de liberdade é atividade exclusiva do Poder Judiciário e tem como pressuposto a culpabilidade do agente.
Se fôssemos otimistas, entenderíamos que a “dosimetria”, conforme sua definição, significaria que cada um dos condenados iria ser julgado individualmente e unicamente com base em seus atos definidos como crime pela lei, pelas instâncias competentes e com o legítimo direito de defesa, o que significaria, para a grande maioria, a liberdade imediata.
Sendo realista, no entanto, acredito que o “acordão” continuará a se basear na narrativa do “golpe”, pelo menos na parte que efetivamente interessa a seus autores, que é, desde o começo, eliminar Bolsonaro da política.
Espero que, pelo menos as centenas de pessoas que foram condenadas pelo 8 de janeiro, ou por outros pretextos semelhantes, sem que se tenham observado os requisitos legais de foro, da individualização da pena e do legítimo direito de defesa, sob pretexto de “defesa da democracia”, sejam anistiadas.
Benjamin Constant (1767-1830), em seu volumoso (595 páginas) tratado “Princípios de política aplicáveis a todos os governos” (1810), contesta que, mesmo em períodos conturbados, seja válido o uso de “medidas arbitrárias” para salvar a democracia. Considera que a própria democracia possui os mecanismos necessários. Argumenta que a “República foi salva na França não pelos atos arbitrários do Terror após a Revolução, mas apesar do Terror”.
Apesar de considerar válida essa posição do importante pensador francês, acho que vão continuar a tomar como parâmetro a narrativa de “atentado às instituições democráticas”, que serviu de base para justificar os processos e as medidas arbitrárias que nortearam o “inquérito do fim do mundo”, que há seis anos serve de pretexto para que as instituições sejam ignoradas. Isto porque, quando se entra por esse caminho, é difícil sair dele.
Espero, contudo, que, pelo menos as centenas de pessoas que foram condenadas pelo 8 de janeiro, ou por outros pretextos semelhantes, sejam anistiadas.
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IMAGEM: Givaldo Barbosa/Agência O Globo