Quando os navios não conseguem mais navegar

“À medida que partidos outrora progressistas perdem relevância eleitoral, para sobreviverem tornam-se mais dependentes das fontes remanescentes de apoio — doadores corporativos, endossos de grupos de interesse, relacionamentos com a mídia”

Alfredo Behrens
19/Set/2025
Professor da FIA Business School
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Quando os navios não conseguem mais navegar

Os partidos progressistas ao redor do mundo encontram-se numa situação paradoxal: são como grandes transatlânticos ainda flutuando, mas incapazes de navegar pelas águas turbulentas da política contemporânea. Enquanto movimentos populistas deslizam como lanchas ágeis, aproveitando cada mudança de corrente, as velhas organizações de esquerda permanecem presas por sua própria estrutura institucional.

No Brasil, a trajetória do Partido dos Trabalhadores ilustra essa metamorfose. O movimento que emergiu das greves do ABC, conectado organicamente às bases sociais, gradualmente se transformou numa máquina burocrática. Os mesmos mecanismos que garantiram sua ascensão ao poder— redes de financiamento, quadros técnicos especializados, alianças com setores empresariais — acabaram criando uma camada dirigente universitária cada vez mais distante dos movimentos populares que lhe deram origem.

A esclerose não se manifesta apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, como antes com Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), Zohran Mamdani, progressista, populista e favorito à Prefeitura da Nova Iorque, foi recebido com suspeitas pelo próprio partido Democrata. As mensagens dos casos Mamdani e AOC são provas de que os ventos políticos mudaram e que o partido Democrata tem dificuldades em se ajustar à mudança.

Na Europa, partidos social-democratas, que outrora dominaram o cenário político, definham em resultados eleitorais históricos. O SPD alemão, com meros 13,9% dos votos, representa o ponto final de décadas. A maquinaria do SPD, projetada para um mundo de emprego industrial estável e divisões de classe claras, mostra-se incapaz de processar novas formas de ansiedade econômica e mudança cultural.

O problema transcende questões táticas ou de comunicação. Essas organizações sofrem do que teóricos organizacionais chamam de "inércia estrutural" — sistemas e procedimentos que fizeram sentido num contexto, tornaram-se obstáculos noutro. O aparato de arrecadação que domina a política Democrata americana, por exemplo, criou dependências de doadores ricos e interesses especiais que os apelos populistas tornam financeiramente suicidas.

O contraste com movimentos populistas exitosos é revelador. Donald Trump conseguiu assumir o controle do Partido Republicano precisamente porque a operação Trump funciona como uma embarcação leve, capaz de manobras rápidas, governando por meio de decretos-lei. Partidos populistas europeus como a Alternativa para a Alemanha ou a Lega italiana alcançaram avanços similares operando inteiramente fora de sistemas partidários estabelecidos, sem o lastro institucional de relacionamentos com doadores, políticos de carreira e procedimentos burocráticos.

A tragédia é que essa calcificação institucional ocorreu exatamente quando a necessidade de pensamento inovador é mais urgente. Mudanças climáticas, disrupção tecnológica, desigualdade econômica e retrocesso democrático exigem abordagens que transcendam categorias ideológicas tradicionais. Contudo, os partidos ideologicamente melhor posicionados para enfrentar esses desafios encontram-se presos em formas organizacionais projetadas para outra era.

Isso cria um círculo vicioso. À medida que partidos outrora progressistas perdem relevância eleitoral, para sobreviverem tornam-se mais dependentes das fontes remanescentes de apoio — doadores corporativos, endossos de grupos de interesse, relacionamentos com a mídia. Essa dependência restringe ainda mais sua capacidade de responder a preocupações populares, acelerando seu declínio.

Quebrar esse círculo requer mais que novas mensagens ou posições políticas — demanda revolução organizacional. O caminho à frente talvez exija aceitar que as formas institucionais atuais não podem ser reformadas, apenas substituídas ou contornadas.

Os cata-ventos estão enferrujados, apontando direções que não correspondem mais aos ventos predominantes. Os faróis apontam para riscos antigos que não correspondem às costas redesenhadas. Os grandes navios ainda flutuam, mas, desorientados, não conseguem mais navegar aos portos. A questão é se a política progressista pode construir novas embarcações adequadas para as águas atuais, ou se continuará a confiar em sinais e embarcações que cada vez menos pessoas consideram relevantes para as tempestades que elas enfrentam.

As grandes empresas sofrem de esclerose parecida à dos velhos partidos, mas isso fica para outro artigo.

Leia mais

Sobre a teoria inercia na mudança organizacional
sobre Colombia https://journals.openedition.org/colombiaint/33920

Em Português, sobre o Brasil

Sobre Espanha, Grecia, Francia e Italia
Sobre Europa

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