Setor produtivo culpa Bolsa Família pela falta de mão de obra
Estudo do Ibre-FGV indica que aumento do valor do benefício para R$ 670 prejudicou oferta de trabalhadores menos qualificados. Para empresários e economistas, momento atual de pleno emprego seria ideal para fazer ajustes em programas assistenciais

A questão demográfica (queda na taxa de natalidade versus envelhecimento da população), o alto custo dos encargos sociais do regime CLT, a baixa produtividade e a falta de qualificação são algumas explicações encontradas para explicar o problema da escassez de mão de obra enfrentada por vários setores da economia.
Com a taxa de desocupação em 5,6% em agosto - a menor da série histórica do IBGE desde 2012, o que é considerado na linguagem econômica como 'pleno emprego' -, esse seria o momento ideal para revisar o assistencialismo e fazer uma espécie de redesenho em programas como o Bolsa Família, na tentativa de mitigar seus efeitos negativos no mercado de trabalho, incentivar a qualificação e minimizar os impactos do problema no dia a dia das empresas.
A questão foi tema de debate entre empresários e economistas que se reuniram para avaliar a conjuntura econômica no final de setembro na Associação Comercial de São Paulo (ACSP). Para eles, em especial o Bolsa Família, atualmente com valor médio de R$ 671,54, têm colaborado para a redução de oferta de mão de obra, pois acaba levando especialmente jovens e pessoas de baixa escolaridade a trabalharem como informais ou por conta própria para não perderem o benefício.
O impacto negativo tem sido sentido em diversos ramos, como supermercados, padarias, agricultura e comércio em geral, com empresários relatando dificuldade crescente para preencher vagas - principalmente de baixa qualificação. Segundo Marcel Solimeo, economista-chefe da ACSP, a situação é mais grave em regiões com forte concentração de beneficiários, chegando a casos em que “há mais pessoas recebendo Bolsa Família que os empregados com carteira assinada."
Esse movimento, que aumenta os gastos do governo e resulta em taxas de juros muito altas, acaba por agravar o problema fiscal, afetando a economia e, em consequência, a geração de empregos e os índices de produtividade.
"Por isso o ideal é que o programa mantenha uma 'porta de saída' para que o cidadão deslanche na vida profissional, com avaliações periódicas e oferta de treinamento e assistência para que a pessoa possa evoluir", afirma o economista.
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Em junho último, as regras do Bolsa Família foram alteradas: quem ultrapassar a renda limite de R$ 218 por pessoa (ou seja, por ter encontrado um emprego formal e aumentado a renda) pode permanecer no programa sob a 'regra de proteção' por até 12 meses, mas recebendo 50% do benefício.
"Assistir os vulneráveis é uma obrigação social e moral, mas o problema da pobreza não pode ser resolvido apenas com transferências. Em momento de desequilíbrio entre demanda e oferta de trabalho, o mercado poderia absorver os vulneráveis se houvesse diminuição dessa dependência do Estado", destacou um empresário do setor financeiro presente à reunião de conjuntura.
Em sua avaliação, o aumento da produtividade se consegue com investimentos direcionados em educação e saúde, "e a qualificação da mão de obra é essencial para permitir melhores salários e crescimento econômico sustentável." A pedido da ACSP, os nomes dos participantes da reunião de conjuntura não são divulgados.
Antonio Lanzana, economista e professor da FEA-USP, afirma que as empresas de menor porte são as mais afetadas, já que dependem de trabalhadores pouco qualificados. Segundo ele, muitos potenciais empregados optam por não ingressar no mercado de trabalho para não perder o benefício, ou aceitam apenas atividades informais, criando um descompasso para as empresas que atuam no mercado formal. Mas não se pode explicar esta situação apenas pelas transferências, afirma.
Ele cita outros pontos, como o crescimento da economia acima do seu potencial, redução da taxa de crescimento demográfico, observada há muitos anos no país, que afeta o ritmo de crescimento da oferta de mão de obra; novos entrantes no mercado de trabalho que não querem ficar restritos a uma empresa ou atividade, preferindo atuar com maior flexibilidade e a parcela da oferta de trabalho absorvida por apps, que atendem às condições de flexibilidade sem vínculo de emprego.
"Não vejo movimentos na área empresarial para revisão desse tipo de benefício, mas as críticas existem no sentido de que há excesso de gastos públicos - o que obriga o Banco Central a manter taxas de juros elevadas que prejudicam a gestão empresarial", diz Lanzana, que confirma que a situação atual é de pleno emprego.
O crescimento dos últimos três anos (3,2%) ocorreu em cima da capacidade ociosa na pandemia e pelo baixo crescimento dos anos anteriores, mas, ao mesmo tempo, cresceu a remuneração média em 3,8% no trimestre encerrado em julho, e a expansão da massa real de rendimentos, em 6,9% nos últimos doze meses (com o aumento do Bolsa Família e a renda gerada pelo trabalho informal), levando ao atual cenário "das empresas com dificuldades para contratar mão de obra", reforça.
Dilema social X desafio empresarial
Um estudo recém-divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), conduzido pelo pesquisador associado Daniel Duque, mostra essa relação entre falta de mão de obra e Bolsa Família. Do valor inicial do benefício, de R$ 190 em 2019, ele foi ampliado após a pandemia para algo em torno de R$ 400, e chegou aos R$ 600 em 2022 - ou seja, foi triplicado em ano eleitoral. Este valor agora representa 35% da renda mediana do trabalho, contra apenas 15% do que representava anteriormente, destaca o estudo.
Os dados também apontam a transformação pela qual o programa passou depois da pandemia: o número de beneficiários subiu de 14 milhões para 21 milhões e o seu orçamento anual saiu da casa R$ 35 bilhões para R$ 170 bilhões - a tal questão fiscal ampliada por gastos sociais mencionada pelos economistas e empresários.
Essa ampliação do Bolsa Família pode explicar por que a taxa de participação do mercado de trabalho (pessoas com mais de 14 anos ocupadas ou procurando emprego) não voltou aos níveis pré-pandemia no Brasil como em outros países: coincidentemente, a taxa tornou a cair quando foi implantado o benefício de R$ 600. O levantamento também mostra que o programa reduziu a oferta de mão de obra entre homens jovens (17 a 30 anos) e desestimulou a busca por empregos formais.
“Quem mais reage ao aumento de renda do Bolsa Família são os homens, que têm maior probabilidade de estar em ocupações formais e menos restrições de tempo impostas pela família. Já entre as mulheres, que em grande parte estão fora da força de trabalho ou na informalidade, cuidando da casa e dos filhos, o recebimento ou não do benefício pouco altera esse comportamento”, explica Duque.
Ele observou também, no estudo, que a taxa de participação no mercado de trabalho do grupo que se tornou elegível para receber o Bolsa Família (renda per capita de R$ 210 para R$ 218) teve uma queda de 11% em relação às famílias que permaneceram fora do programa por diferença mínima (R$ 219 para R$ 226). Esse valor é quase metade do aumento relativo de cobertura pelo programa. “Ou seja, a cada duas famílias que recebem Bolsa Família, uma sai da força de trabalho."
Mas, segundo o pesquisador, outros elementos estruturais pesam mais, além de o Brasil não ter conseguido recuperar a taxa de participação pré-pandemia: as mudanças demográficas, que vêm reduzindo a população jovem disponível para setores que demandam mão de obra intensiva, como comércio e construção civil.
“A faixa etária de 18 a 29 anos está em queda absoluta há algum tempo, o que naturalmente dificulta a reposição da força de trabalho”, afirma.
Outro ponto é a chamada “aversão ao risco”: para muitos beneficiários, abrir mão do Bolsa Família para ingressar em um emprego formal, que para muitos têm pouca atratividade por conta de salários baixos e jornadas extensas, pode significar perder a garantia de renda mínima. Mesmo quando o salário é maior, o medo de ficar sem o benefício caso o trabalho não se sustente e ter que voltar ao fim da fila, leva essas pessoas a preferir o mínimo possível e garantido.
"É importante lembrar, porém, que a expansão do programa se deu até 2023, depois parou de 2024 para 2025, então não explica a falta de mão de obra recente."
O pesquisador também comenta que o governo tem optado por não reajustar o valor do Bolsa Família para compensar a inflação como forma de conter distorções no mercado de trabalho. Segundo ele, a decisão de manter o benefício congelado reduz gradualmente o poder de compra do programa, o que deveria tornar os salários formais mais atrativos em relação à renda garantida pelo auxílio.
“Historicamente, o aumento dos benefícios ocorria perto de períodos eleitorais, quando o impacto sobre a oferta de trabalho era menor porque o valor inicial era muito baixo”, observa. “Agora, como o benefício está em um patamar elevado, qualquer reajuste teria efeito direto sobre a disposição de trabalhar formalmente.”
Duque também aponta um incentivo político perverso que dificulta mudanças estruturais no desenho do programa. Segundo ele, o valor fixo e padronizado do benefício se tornou popular entre os beneficiários, e politicamente sensível para qualquer governo que tente reformulá-lo.
“O modelo per capita, que era mais eficaz no combate à pobreza, foi abandonado porque gerava variações de valor difíceis de comunicar ao público.”
Para o economista, que sugere que o custo básico poderia ter valor revisado para baixo dos atuais R$ 600, o custo político de revisar o Bolsa Família é alto, mas necessário. Reformas que vinculem o benefício a critérios de produtividade, educação ou composição familiar - como reforçar transferências de renda para mães com filhos pequenos e jovens que só saíram do mercado ou pararam de estudar pela necessidade de complementar a renda da família -, poderiam "reduzir os efeitos negativos sobre o mercado de trabalho sem enfraquecer a rede de proteção social."
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IMAGEM: Andrea Felizolla/DC