Shoppings vivem 'momento Kodak' e devem repensar modelo de negócio
Assim como a centenária empresa de fotografia, que demorou para migrar para o digital, os shoppings agora enfrentam a pressão de rever sua função para além das compras, segundo Luiz Alberto Marinho, da Gouvêa Malls

Os shoppings, que evoluíram na última década avançando além de mero centro de compras para se tornarem um espaço de entretenimento, convivência e conveniência, agora chegaram ao seu 'momento Kodak' - ou seja, à necessidade urgente de se reinventar diante de transformações profundas no comportamento do consumidor e com o avanço do digital.
Assim como a centenária empresa de fotografia, que perdeu a oportunidade de migrar seu modelo de negócios na janela de tempo ideal, os shoppings agora enfrentam a pressão de repensar sua função além das compras.
A avaliação é de Luiz Alberto Marinho, sócio-diretor da Gouvêa Malls, consultoria especializada em gestão e soluções para centros de compras, que falou sobre o tema na palestra "Os futuros dos shoppings centers". Dela, participaram Vicente Avelar, diretor da Allos, e Cecilia Ligiéro, diretora de marketing e inovação da Ancar Ivanhoe, como cases.
Em conversa com o Diário do Comércio no Latam Retail Show, realizado de 16 a 17 de setembro na capital paulista, Marinho, que tem 35 anos de experiência no setor, afirma que um dos caminhos é abandonar a ideia de que 'localização' é seu maior ativo, e reconhecer que o verdadeiro valor - inclusive para monetizar os negócios - está nas pessoas e nos vínculos que são criados nesses espaços.
Hoje, destaca, o consumidor divide o tempo entre vários canais, e isso exige que o shopping ofereça novas razões para uma visita física. "A fragmentação dos canais acelera a evolução do shopping de um lugar de compras para um lugar de múltiplas finalidades", afirma. O desafio é claro: transformar shoppings em organismos vivos, flexíveis e em constante evolução.
Entre os exemplos dessas iniciativas estão o Taste Lab, espécie de laboratório de experimentações culinárias e os Kargs, eletropostos de recarga de veículos elétricos dos shoppings da Allos. Ou o parque infantil ao ar livre Junga Park, anexo ao shopping Nova iguaçú, e o Hub do Lojista, da Ancar Ivanhoe, que inserem as lojas satélites nesse contexto de mudança.
Dentro dessa tendência, ainda há projetos multiuso e os conceitos de 'cidade de 15 minutos', que integram moradia, trabalho, lazer e o centro de compras em um mesmo espaço, ampliando a relevância dos shoppings nas centralidades urbanas, lembra.
"A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2023, admitiu que estamos vivendo uma 'epidemia da solidão'. Isso faz com que muitas pessoas busquem espaços de convivência. Essa é a oportunidade para os shoppings investirem em grupos intencionais e, a partir da base de clientes identificada, criar produtos para monetizar isso tudo e continuar no jogo."
A seguir, confira a entrevista com Luiz Alberto Marinho:
Diário do Comércio - O senhor fala sobre "Os futuros dos shoppings" assim mesmo, no plural. Por que são vários?
Luiz Alberto Marinho - Não tem um único futuro possível, um destino, um endereço para onde os shoppings devam ir. É um futuro que está em construção. Tem um conto do Jorge Luis Borges, 'O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam', que fala que, a cada decisão, se apresentam novas opções. Então, a única coisa errada é não se manter em movimento, ficar parado. Mas é preciso testar esses caminhos, porque o comportamento do consumidor é permanentemente mutável.
Os shoppings precisam ser um organismo vivo, permanentemente se adaptando a esses novos comportamentos do consumidor. Por exemplo, a gente percebe que a fragmentação dos canais de compra é um caminho sem volta e vai aumentar. Em quatro meses, o TikTok Shop já tem 2% do GMV do Mercado Livre se a gente anualizar esse período.
É muita coisa. Vem aí a televisão interativa, em que o consumidor pode fazer compras em tempo real... A fragmentação dos canais acelera a evolução do shopping de um lugar de compra para um lugar muito mais amplo, de múltiplas finalidades.
Outra coisa importante é o tempo. A gente percebe que, neste momento, em 2024, por exemplo, ainda não havia se recuperado o fluxo de visitas de pré-pandemia, de 2019. E talvez a gente não alcance isso, porque estamos dividindo o nosso tempo com outras atividades. Cada filme que eu assisto no streaming é uma visita a menos no cinema do shopping.
Então os shoppings vão ter que encontrar novas razões para as pessoas irem até eles. E isso tem a ver com investir mais em alimentação, em entretenimento, em conexões. E o terceiro ponto importante, que é muito favorável para o shopping, é a tal da 'epidemia da solidão'. A Organização Mundial de Saúde, em 2023, admitiu que estamos vivendo essa epidemia (fenômeno global crescente de isolamento social e falta de conexão emocional, exacerbado pela pandemia e considerado um problema de saúde pública).
E qual o papel dos shoppings nesse contexto?
Luiz Alberto Marinho - Isso faz com que muitas pessoas busquem espaços de convivência, por isso essa é uma oportunidade para os shoppings centers criarem ou investirem na criação de grupos intencionais. Um exemplo é o shopping São Luís (MA), que fez um evento para transmitir em um grande telão na praça de alimentação o último episódio de uma série de dorama da Netflix.
Porque existe um grupo muito coeso em torno daquele estilo de série e tal. Mas também, grupos de pais de pet, bikers... são diversos. Então o shopping pensa em começar a investir nesses grupos intencionais. E, para isso, altera o mix de loja, altera o espaço físico. É dessa forma que o shopping vai evoluindo, se transformando no organismo vivo que permite ter flexibilidade de se ajustar a essa nova sociedade que está sendo construída hoje em dia. Por isso não há só um futuro, mas diversos futuros possíveis.
Há 10 anos, a tendência para o varejo de shoppings era de que eles iam deixar de ser meros centros de compras para virarem espaço de entretenimento, convivência e conveniência. O movimento continua, mas é por isso que o senhor falou que agora eles vivem um 'momento Kodak'?
Luiz Alberto Marinho - A Kodak desenvolveu a tecnologia da câmera digital e até hoje ganha royalties por isso. Mas, como ela ainda estava muito baseada no modelo do filme fotográfico, tinha uma janela de tempo para evoluir e migrar o modelo de negócio dela. Fez um estudo sobre isso, mas não conseguiu fazer essa migração dentro desta janela de tempo.
Quando a gente fala que os shoppings vivem um 'momento Kodak', não significa que eles terão o mesmo destino da Kodak; eles estão vivendo esta janela de tempo. Alguns já estão nessa jornada, outros já estão a caminho, outros ainda estão planejando essa jornada e outros nem começaram a pensar no assunto. Esses precisam acelerar, começar a pensar já.
O senhor pode dar exemplos de quem já está fazendo isso, se adaptando a esse novo momento e atraindo essas pessoas para ir além dessa 'epidemia da solidão'?
Luiz Alberto Marinho - Veja, é importante entender que os shopping centers foram criados em cima de um conceito básico que era localização. Tem até um jargão, um ditado nessa indústria que fala assim: 'os três fatores críticos de sucesso no setor são, nessa ordem, localização, localização e localização.'
Mas a noção clássica de tempo e espaço literalmente 'foi para o espaço' há muito tempo por causa do digital. Então é preciso entender que o ativo do shopping center não é mais o espaço físico. Porque, à noite, quando ele está fechado, não vale tanto assim. O ativo do shopping são as pessoas, é a relação que elas estabelecem, a conexão que a Cecília (Ligiéro, a diretora da Ancar Ivanhoe) falou. Porque é aí que você começa a monetizar essa relação.
Então, o Junga Park é um exemplo, o Taste Lab é outro exemplo, os postos para recarga de carro elétrico... São maneiras de você, a partir da base de clientes identificada, começar a criar produtos e poder monetizar isso tudo.
E aqui em São Paulo?
Luiz Alberto Marinho - O Mooca Plaza Shopping tem um pet park maravilhoso, que reúne esses 'pais de pet.' O Shopping Metrô Tucuruvi já fez eventos como o Arena Gamer, para reunir grupos de jovens que curtem esse tipo de coisa, e a nostalgia é um bom exemplo disso, pois exposições de videogames antigos unem gerações. São diversos tipos de comunidades intencionais. No Rio de Janeiro, o Rio Sul fez, durante um tempo, um clube reunindo mães de crianças que se conheceram no fraldário.
Outro exemplo, em Recife, no Plaza Casa Forte, é um grupo de idosos que se reúnem diariamente em torno de piano, que fica em frente ao café, e cantam a plenos pulmões canções de antigamente. Ou seja, é um grupo ocasional que se reuniu em torno daquela ocasião de encontro. E o shopping não apenas vai servir para hospedar, vai proporcionar, promover, estimular esses momentos de convivência, de alegria.
E a compra, fica para um último momento, um segundo plano?
Luiz Alberto Marinho - Eu estou com pouco tempo? Sim. Tenho muitas opções e eu tenho pouco tempo, mas eu estou ali. Eu criei um vínculo emocional com aquele lugar de um lado e, do outro, tem a questão da conveniência de tempo, já que estou ali também. Então, eu tenho um fator emocional e fator racional que me levam a concentrar compras naquele lugar.
Onde o pequeno lojista, o lojista satélite, se insere nesse novo contexto?
Luiz Alberto Marinho - O universo do varejo é cada vez mais complexo, sofisticado e hostil para quem não tem tamanho, escala. Então, existe uma tendência clara de concentração de mercado na mão dos grandes em detrimento dos pequenos. Mesmo no universo das franquias, as franquias, os multifranqueados, eles têm hoje mais força do que os franqueados que têm uma ou duas lojas pela escala. Então existe de fato um risco para o pequeno negócio.
E o shopping tem informações da base de clientes dele, tem um canal de comunicação direto com esses clientes no meio do seu programa de relacionamento, que pode ser uma ferramenta importante para conectar esses pequenos lojistas com essa base, criando iniciativas como o Hub do Lojista.
Porque o shopping precisa desse pequeno lojista por diversos motivos: para poder completar o mix, para poder dar a cor local e botar de pé o modelo de negócio, porque eles são importantes na receita toda do aluguel e também para trazer público.
Exemplos como o Cidade Center Norte, que insere os shoppings no conceito de centralidades urbanas, até pouco tempo atrás chamados de life center (que reúne torres comerciais, residenciais, hotel, parque e até o shopping em si), são uma tendência que vai ajudar os centros de compras a ultrapassarem esse 'momento Kodak'?
Luiz Alberto Marinho - Os projetos multiuso, que juntam residência, trabalho, lazer e compras, são um conceito que os americanos chamam de live, work and play. Ou seja, é a cidade de 15 minutos, onde você faz tudo ali no entorno. Então sim, esse é um conceito que não apenas se mantém, como ampliou e evoluiu.
Essa é uma das formas de ajudar esse shopping a evoluir além dessa janela de tempo. O que ele precisa é começar a entender e abraçar esse novo conceito que, em última análise, vai exigir uma evolução no modelo de negócio que hoje ainda é muito baseado no aluguel, no imobiliário, no real estate, e desenvolver novos produtos para criar essa conexão com o consumidor.
FOTO: Karina Lignelli